terça-feira, 24 de novembro de 2009

* Guerras

O comércio era o principal interesse dos europeus na África, pois permitia uma acumulação importante baseada no valor de troca dos produtos vendidos. Vemos, no entanto, que no século XVII a região Centro-africana é marcada por muitos conflitos e quando os portugueses, estabelecidos em Luanda desde 1576, interferem é para fazer a guerra, e não para garantir um comércio pacífico. Por quê? O que aparentemente é um erro porque fragiliza o comércio, pode ser entendido quando consideramos que os prisioneiros de guerra eram parte das trocas, pois podiam ser vendidos como escravos. Para os portugueses, esse era o comércio mais lucrativo.

Assim, o tráfico de escravos africanos revela-se a conexão entre essas duas posturas políticas européias, a guerra declarada e o comércio, dando origem a um ciclo que varia conforme interesses de africanos, luso-angolanos e portugueses. Havia, portanto, alternâncias entre o comércio que se fazia regularmente nas fortificações do interior (os presídios) onde também se recolhia tributos [veja documento a respeito nos comentários], e aquele feito dos cativos de guerras, e, sempre que possível, os portugueses tomavam partido em conflitos, esperando beneficiar-se desses últimos.

Mas essas investidas desestabilizavam o comércio regular que também interessava aos reinos africanos, além de alterar as configurações de poder entre esses Estados. Isso não significa que os europeus eram tecnicamente superiores e nem sempre vitoriosos, mas porque qualquer ataque podia desencadear uma série de movimentações das rivalidades e alianças locais, as guerras debilitavam os reinos e chegaram a despovoar alguns Estados africanos. Esses dois fatores, o prejuízo imediato da guerra e a interrupção do comércio contrariavam os desejos de potentados locais e criaram uma grande antipatia aos portugueses. Nos anos 1640, quando holandeses chegam à região de Angola, tornando-se aliados do reino do Congo, fica visível o jogo político do lado africano, que não apenas resiste à presença dos europeus, mas utiliza-os uns contra os outros em seu proveito: essa é uma evidência importante quando consideramos os mecanismos da escravidão de ambos os lados do Atlântico.

-- Conheça a "Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola", escrita em 1668 pelo missionário Giovanni Cavazzi da Montecuccolo. Tradução, apresentação e comentários de John K. Thornton (em inglês).


Duas aquarelas do manuscrito de Cavazzi sobre o tema da 'Rainha Jinga e seu Séquito' [fonte e informações: University of Virginia -  http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/details.php?categorynum=2&categoryName=Pre-Colonial Africa: Society, Polity, Culture&theRecord=69&recordCount=240 http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/details.php?categorynum=2&categoryName=Pre-Colonial Africa: Society, Polity, Culture&theRecord=68&recordCount=240

-- Como era a guerra em Angola? Quais as táticas usadas? Leia em artigo de Roquinaldo Ferreira [Revista Estudos Históricos, Vol. 1, No 39 (2007)]

SAIBA MAIS:
Silva, A. da Costa A manilha e o libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional, 2002.
Thornton, J. K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro, Campus/Elsivier, 2004.
_______. 'The Art of War in Angola (1575-1680)'. in Comparative Studies in Society and History, Vol. 30, No. 2 (Apr., 1988), pp. 360-378.

Um comentário:

  1. “Declaração dos tributos que se pedem aos sobas”

    (Documento encontrado na Biblioteca da Ajuda, códice 51-VIII: 30 e 31. ‘Governo de Fernão de Sousa’ e publicado por Alfredo de Albuquerque Felner em Angola: Apontamentos sobre a ocupação e início do estabelecimento dos portugueses no Congo, Angola e Benguela. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933, pp. 471-472.)

    (...) Infuca é vender aos sobas de fiado, por modos e palavras que lhes parece que, ou não pagarão, ou o farão tarde, dando-lhes as fazendas por rogos ou por força, e passado certo tempo, mandam os capitães e portugueses pedir aos sobas que lhe paguem o que deram a infuca, e não pagando, prendem-lhe mulheres e filhos e vassalos (...) que são forros, e amarrados sem ordem de justiça os mandam os mandam a esta cidade a vender por peças e embarcar de mar em fora, pelo que se deve evitar este modo de venda, e que somente se faça nas feiras, e pumbos por pumbeiros. [...]

    De autor não explicitado, o papel é do governo de Fernão de Sousa, (entre 1624 e 1630, período em que o porto de Luanda se expandia para se tornar o maior fornecedor de escravos) e trata de diversas formas de tributos cobrados aos chefes africanos (sobas), da quais destacamos apenas uma, que deixa transparecer a relação entre comércio e escravização no interior da África Central: comerciantes passam mercadorias aos sobas e posteriormente cobram um valor, que, caso não possam pagar, lhes é tomado em escravos pelos capitães. O texto evidencia que essa gente nascida livre era escravizada “sem ordem de justiça”, e recomenda que se evite essa prática, provavelmente para evitar desordens conseqüentes.

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