terça-feira, 24 de novembro de 2009

* As justificativas para escravidão

Nos diferentes lugares e momentos históricos a escravidão teve seu caráter específico e foi sustentada em determinadas ideologias. Na antiguidade, ela era legitimada a partir de questões hierárquicas, ou seja, na idéia de que o escravo era de algum modo, um indivíduo inferior na sociedade. No mundo moderno, a justificativa dos europeus centrava-se na inferioridade dos negros e na crença de que eles colonizadores, cristãos e civilizados, tinham a missão de salvar os negros e retirá-los do inferno que era a África.

Com a ascensão da teoria dos direitos naturais, no fim do século XVIII, não era mais possível utilizar a ideologia do bem positivo, ou seja, que a escravidão permitiria civilizar o bárbaro africano e sua alma pagã, portanto os países europeus, em sua maioria, aderiram à causa da humanidade e iniciaram seus processos de abolição do tráfico e da escravidão.

Com o descrédito da ideologia do bem positivo, os questionamentos sobre o caráter da escravidão tornaram-se mais intensos e logo, surgiram comparações de debates a respeito do caráter benigno ou não da escravidão africana. Alguns historiadores argumentam que a escravidão na África teria sido mais branda e que as condições dos escravos eram melhores do que na América.

É relevante entender, que independente da natureza e da benignidade da escravidão africana, ela já existia antes do século XV e sob formas que predispunham as entidades políticas à venda de homens, o que, podia parecer paradoxal, já que o objetivo do grupo social africano era ter mais dependentes para garantir sua importância política. Já na América e na Europa os escravos tinham a finalidade de garantir a produção nas colônias e o desenvolvimento das metrópoles.

Contudo é preciso esclarecer, que a comparação a respeito do caráter da escravidão na África, na Europa e na América, é problemática, já que é necessário considerar as diferenças do local e período em que ela ocorria. E, principalmente, que a questão que deve ser colocada para pensar as formas de escravidão é o direito ou não a liberdade e não nos moldes em que ela foi praticada.


SAIBA MAIS:
Lovejoy, Paul. A escravidão na Africa : uma historia de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

* Tráfico e Travessia Transatlântica

O tráfico transatlântico pode ter sido invenção européia, mas a efetiva captura e comercialização de escravos foi o resultado de um complexo jogo de interações e continuidades históricas, pois lógicas bastante distintas justificavam a prática da escravidão entre os africanos e os europeus. É preciso notar a importância dos chefes africanos nesse processo de apreensão de escravos, tanto para mantê-los na África, como para comercializá-los com os europeus.

Nos primeiros anos, os navegadores portugueses utilizaram de extrema violência para capturar os negros. Mas, logo perceberam que não possuíam meios de obrigar os africanos a participar desse comércio contra sua vontade e que havia na África uma abundância de escravos e a vontade africana de comercializá-los. Por isso, iniciaram-se as trocas pacíficas de produtos europeus por escravos, que caracterizaram esse comércio como uma atividade voluntária e que contou com a participação dos líderes africanos.

Pode-se argumentar que, nos séculos XV e XVI, não havia a enorme demanda escravista que ocorrerá por ocasião da colonização da América, por isso o pouco interesse em reduzir sistematicamente um grande número de africanos à escravidão. Há porém a continuidade de uma prática seletiva, de distinção entre africanos que podem ou não ser escravizados, nas diversas regiões do continente nos séculos seguintes, o que aponta para a existência de outra lógica no abastecimento de escravos, além do fator econômico da demanda.

A trajetória do negro, desde sua captura no interior da África até o seu desembarque no outro lado do Atlântico era marcada por condições penosas. Nos navios a superlotação, a ignorância e o nível dos meios técnicos disponíveis na época aliados ao comportamento humano - que nesse comércio negreiro punha em ação homens com sensibilidade pouco desenvolvida e que atribuíam pouco valor à vida humana contribuíam para as precárias condições a bordo.
Estimativas do historiador Joseph Miller mostram que de cada 100 escravos capturados em Angola, 36 morriam na trajetória até a costa, 7 à espera do embarque nos negreiros, 6 faleciam durante a travessia e 23 não sobreviviam aos primeiros anos no Brasil, ou seja, 72 % dos escravos pereciam nos quatro primeiros anos desde a sua escravização.

O tráfico transatlântico deixava graves seqüelas físicas e psicológicas, a angstia e a ausência de esperança associados a grande debilidade física podia resultar no que os contemporâneos chamavam de banzo, um estado psíquico de profunda melancolia e abatimento no qual o escravo se recusava a viver. No outro extremo dessa situação a angústia dos escravos recém-embarcados poderia resultar não na apatia, mas sim na revolta.

Até o século XVII, os  principais portos de embarque de escravos destinados ao tráfico transatlântico eram na Senegâmbia e Golfo da Guiné. No entanto, a partir de 1610, a América, inclusive o Brasil, que recebiam até então escravos desses portos passaram a ser abastecidos de escravos oriundos do porto de Angola. Logo, Luanda tornou-se a capital do tráfico e a partir do século XVII esse comércio sofreu um crescimento exponencial, sendo a América o principal destino desses cativos.

* Guerras

O comércio era o principal interesse dos europeus na África, pois permitia uma acumulação importante baseada no valor de troca dos produtos vendidos. Vemos, no entanto, que no século XVII a região Centro-africana é marcada por muitos conflitos e quando os portugueses, estabelecidos em Luanda desde 1576, interferem é para fazer a guerra, e não para garantir um comércio pacífico. Por quê? O que aparentemente é um erro porque fragiliza o comércio, pode ser entendido quando consideramos que os prisioneiros de guerra eram parte das trocas, pois podiam ser vendidos como escravos. Para os portugueses, esse era o comércio mais lucrativo.

Assim, o tráfico de escravos africanos revela-se a conexão entre essas duas posturas políticas européias, a guerra declarada e o comércio, dando origem a um ciclo que varia conforme interesses de africanos, luso-angolanos e portugueses. Havia, portanto, alternâncias entre o comércio que se fazia regularmente nas fortificações do interior (os presídios) onde também se recolhia tributos [veja documento a respeito nos comentários], e aquele feito dos cativos de guerras, e, sempre que possível, os portugueses tomavam partido em conflitos, esperando beneficiar-se desses últimos.

Mas essas investidas desestabilizavam o comércio regular que também interessava aos reinos africanos, além de alterar as configurações de poder entre esses Estados. Isso não significa que os europeus eram tecnicamente superiores e nem sempre vitoriosos, mas porque qualquer ataque podia desencadear uma série de movimentações das rivalidades e alianças locais, as guerras debilitavam os reinos e chegaram a despovoar alguns Estados africanos. Esses dois fatores, o prejuízo imediato da guerra e a interrupção do comércio contrariavam os desejos de potentados locais e criaram uma grande antipatia aos portugueses. Nos anos 1640, quando holandeses chegam à região de Angola, tornando-se aliados do reino do Congo, fica visível o jogo político do lado africano, que não apenas resiste à presença dos europeus, mas utiliza-os uns contra os outros em seu proveito: essa é uma evidência importante quando consideramos os mecanismos da escravidão de ambos os lados do Atlântico.

-- Conheça a "Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola", escrita em 1668 pelo missionário Giovanni Cavazzi da Montecuccolo. Tradução, apresentação e comentários de John K. Thornton (em inglês).


Duas aquarelas do manuscrito de Cavazzi sobre o tema da 'Rainha Jinga e seu Séquito' [fonte e informações: University of Virginia -  http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/details.php?categorynum=2&categoryName=Pre-Colonial Africa: Society, Polity, Culture&theRecord=69&recordCount=240 http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/details.php?categorynum=2&categoryName=Pre-Colonial Africa: Society, Polity, Culture&theRecord=68&recordCount=240

-- Como era a guerra em Angola? Quais as táticas usadas? Leia em artigo de Roquinaldo Ferreira [Revista Estudos Históricos, Vol. 1, No 39 (2007)]

SAIBA MAIS:
Silva, A. da Costa A manilha e o libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional, 2002.
Thornton, J. K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro, Campus/Elsivier, 2004.
_______. 'The Art of War in Angola (1575-1680)'. in Comparative Studies in Society and History, Vol. 30, No. 2 (Apr., 1988), pp. 360-378.

* Comércio de Escravos

O tráfico se instaurou na África, pela ação combinada de guerras e do comércio, entre as regiões saqueadas e aquelas que, situada nas zonas de influência dos mercados, compravam e exploravam escravos, alimentando uma economia continental em que se trocavam produtos e pessoas. A economia comercial se desenvolveu inteiramente em torno do mercado, que era a condição de existência daquilo que podemos chamar de escravidão mercantil, pois era através dele que os cativos chegavam às mãos dos escravagistas, e também que se escoava o produto do trabalho escravo. Não é possível determinar o número exato de escravos que foram comercializados, embora alguns dados de exportação forneçam, alguma indicação de escala do comércio interno.




As trocas se faziam muito largamente em produtos, que não eram todos intercambiáveis entre si, no entanto, a economia da África utilizava também várias moedas correntes, como a concha caurim. Utilizadas em grande parte da África Ocidental, as conchas eram transportadas para o interior do continente para comprar toda espécie de mercadorias. Sua importância era tamanha que os portugueses chegaram a se apoderar de terras onde o caurim era comum e inundar o comércio com as conchas-moeda apanhadas. 



acima: conchas caurim comparadas a uma moeda em primeiro plano. ao lado: Manilha de bronze de fabricação britânica (c.1800). Em certas regiões da costa atlântica da África, eram usadas como braceletes e circulavam como dinheiro.

www.moneymuseum.com/frontend/coins/search/form.jsp


Os comerciantes compravam as capturas dos aristocratas, as acondicionavam, transportavam e exportavam, ao fazerem isso contribuíam para expansão do processo escravista, abrindo mercados a sua passagem por toda a parte em  que a produção local era capaz de oferecer uma contrapartida às suas mercadorias, e, entre essas, os cativos. Os chamados pumbeiros, africanos ou mestiços que faziam o trajeto da costa às fortalezas e povoados do interior, eram responsáveis pela ‘captação’ dos escravos, usando como moeda de troca principalmente a peça de tecido, daí a expressão que designa o equivalente a um escravo do sexo masculino adulto e sadio: peça de Índias.

Os escravos eram remetidos à costa dos principais mercados exploradores e trocados por tecidos, aguardente, armas de fogo e metais: barras de ferro, moedas de prata, manilhas de bronze. Enquanto os escravos eram o principal item de exportação em algumas regiões da África entre 1600 e 1800, em outros lugares eles ficavam atrás do ouro e de outras mercadorias. O Vale do rio Zambeze, a Etiópia, o alto Nilo, a Costa do Ouro e a Senegâmbia eram as áreas mais afortunadas, pois o ouro estava facilmente acessível. Especiarias, perfume, marfim, couros e peles, cera de abelhas e goma arábica também eram importantes itens de comércio, no entanto, para regiões como a Costa dos Escravos, a baía de Biafra e a África Centro-Ocidental, os escravos eram quase o único item de exportação.



SAIBA MAIS:
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na Africa : uma historia de suas transformações.Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2002.
MEILLASOUX, Claude.  Antropologia da escravidão : o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro : J. Zahar, 1995
KLEIN, Herbert S. O trafico de escravos no Atlantico. Ribeirão Preto, SP : FUNPEC, 2004.
PEREIRA, Adriano. Economia e sociedade em Angola na epoca da Rainha Jinga : (seculo XVII). Lisboa : Estampa, 1990. 



* Estados da África Central

A região centro-ocidental da África é habitada por povos de língua Banto ali instalados desde o século X. Esse grupo lingüístico dividiu-se em numerosas etnias que se fixaram junto aos grandes rios na bacia do rio Zaire e gradualmente originaram pequenos estados e confederações fundamentados na linhagem, isso é, baseados no parentesco ou incorporação ritual de membros. Esses estados desenvolveram comércio de marfim, tecidos, cerâmica, cobre, e outros minerais em uma extensa rede que incluía também escravos de reinos rivais, mesmo antes da chegada dos portugueses no Congo em 1483.

Esse primeiro contato no século XV revelou a possibilidade de obter na África mercadorias valorizadas – principalmente os escravos - mas considerar a presença portuguesa no Congo do século XVI como uma ‘colônia’ seria equivocado: não se instala administração portuguesa ali, o manicongo continua a governar como chefe de um Estado independente, que adota o cristianismo e é declarado vassalo português. Um território para estabelecimento português só será cedido, em troca de ajuda militar, em 1576, permitindo maior independência dos negociadores portugueses em relação ao poder do Congo. É a partir daí que tem início o período de alianças e guerras que se estenderá ao longo do século XVII. Para compreender esses acontecimentos, vejamos um pouco sobre os estados na região Congo-Angola a partir de 1620:


             www.historycooperative.org/journals/wm/60.2/images/thornton_figure1b.gif

Congo – Reino bakongo de maior extensão na região. Governado pelo mani de Mbanza Kongo (ou rei de São Salvador do Congo, para os portugueses), adotara o cristianismo no século XVI e estabelecera relações diplomáticas com Portugal. Algumas das suas províncias, como Soyo e Bamba, constantemente reclamavam independência.
Loango – Estado ao longo da costa, logo ao norte do rio Zaire e do reino do Congo. Possuía numerosos Estados subordinados e tributários.
Dongo – Reino ambundo ao longo do rio Cuanza. Em 1624 uma guerra de sucessão ali resultou na expulsão da rainha Jinga e transformou o reino em vassalo nominal dos portugueses. É anexado pelos portugueses apenas em 1672.
Matamba – Jinga e seus partidários conquistam esse reino a nordeste do Dongo em 1631 e desde então tiveram grande participação nos conflitos no interior até a metade do século XVII.
Estados Dembos – pequenos estados e confederações na fronteira do Congo, tributários de reinos maiores como Congo, Dongo, Matamba ou dos portugueses e frequentemente reivindicados por todos eles.
Kasanje – Estado fundado por um chefe imbangala ao sul de Matamba, contra quem estava em constante conflito.
Angola – Colônia portuguesa estabelecida com a fundação de Luanda. Ficava ao sul do Congo e leste do Dongo, sobre o qual foi se expandindo ao longo do século XVII.
Há ainda os chamados Jagas (imbangalas), grupos nômades de guerreiros sem linhagem que no século XVI invadiram o Congo e se espalharam por toda a região, participando nas guerras do século seguinte como mercenários tanto para portugueses como para os reinos africanos.

-- Veja a região no mapa de 1754 do cartógrafo francês Jacques Nicolas Bellin (1703-1772). Informações sobre esse documento nos comentários abaixo.

SAIBA MAIS:
Silva, A. da Costa A manilha e o libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional, 2002.
Thornton, J. K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro, Campus/Elsivier, 2004.

* A questão da escravidão: um olhar sobre a África

O que logo vem a cabeça quando pensamos em escravidão? Prática que se desenvolveu, principalmente, na Europa e na América a partir dos descobrimentos e da colonização de novas terras? Dominação de brancos sobre os negros? É possível listar várias idéias que se desenvolveram a respeito da prática escravista ao longo da história, no entanto, muitas delas são equivocadas e precisam ser repensadas. Façamos então, uma breve viagem pela História da escravidão, concentrando-nos, principalmente, na África.

A escravidão era uma prática desde a antiguidade, que teria se estendido de Roma para muitos outros países. Já na Idade Média, parte significativa da África se estruturava ao redor do tráfico e da escravidão muitos anos antes de os europeus lá desembarcarem e no fim do período medieval desenvolveu-se no Mediterrâneo um complexo colonial escravista, que anos depois seria aplicado na América. Calcula-se que antes da chegada dos europeus no continente africano, a chamada África Negra já teria comercializado cerca de seis milhões de escravos para a região do mediterrâneo e teria desenvolvido na própria África Negra uma escravatura interna.

Nessas regiões africanas a escravidão estava relacionada com o estatuto da terra, pois nesses locais a necessidade e o desejo de absorver e acumular pessoas sob diversas formas, inclusive sob regime escravista, era o meio de cultivar a terra e o meio de garantir e expandir o poder de determinado grupo social. Portanto, a escravidão se relacionava a uma intensa necessidade de agregação de dependentes, isso é, podia-se negociar pessoas para que trabalhassem ou para que simplesmente fossem incorporadas a uma linhagem familiar, fortalecendo o prestígio do chefe de família. Dessa forma, pequenos Estados africanos, com grande densidade populacional, comumente apresentavam uma grande porção de escravos a serviço do soberano, e assim, muitos podiam ser comercializados como melhor lhe parecesse.

A partir da chegada dos europeus na África, aqueles escravos que não eram destinados à escravidão africana eram levados à costa, de onde partiriam para seu destino, geralmente, do outro lado do Atlântico. A Europa e as colônias americanas, eram os principais lugares de desembarque dos cativos, onde eram obrigados a realizar trabalhos forçados. O principal meio de conseguir escravos no território africano era a guerra. Mas, como nas batalhas os homens, em sua maioria, conseguiam fugir ou eram mortos, a estratégia dos líderes africanos era capturar crianças e mulheres.

SAIBA MAIS:
Miers, Susanne; Kopitoff, Igor. Slavery in Africa: Historical and Anthropological Perspectives. Madison: 1977. pp.12-80.